Para Glauco Affonso Tejo
21/ 03/ 14 - 13/ 04/ 14
Filho Amado
Se é verdade o que dizem
disso do corpo acabar
mas infinito ser o espírito
então
ouça isto...
não lembrarei de você apenas
o primeiro ultrassom
você e seu irmão pequenas manchinhas
no útero da mamãe
nem dos beijos que eu dava, toda noite,
na barriga que crescia
não lembrarei de você apenas
a hora do parto
-daquelas emoções
únicas na vida-
você calmo e sereno
ao contrário do xará da Ilíada
nas mãos da enfermeira que lhe aplicava
os primeiros cuidados
não lembrarei de você apenas
o susto de te ver coberto
de fios e instrumentos que apitam
e a ansiedade de olhar as máquinas
que monitoravam teus sinaizinhos
não lembrarei apenas
da vigília, em pé, diante da incubadora
acompanhando preocupado
as máquinas
que monitoravam teus sinaizinhos
não lembrarei apenas
que costumava acarinhar, suavemente,
com a ponta dos dedos,
os cabelinhos de sua cabeça
não lembrarei apenas
das pequeninas vitórias diárias
- já voltou pro leite
- já está mais gordinho
- já respira melhor
às quais, pais iludidos, nos
apegávamos
não lembrarei apenas, filho,
que seus curtos 23 dias de vida
trouxeram para nós emoções jamais vividas
da esperança à dor, da ansiedade à fé
angústia e confiança
e o amor incondicional, que só quando somos pais conhecemos
tampouco lembrarei apenas
daqueles momentos depois
(e esse "depois" é o eufemismo
mais triste jamais posto em um verso)
de como o pequeno caixãozinho de criança
era enorme para você
de como chovia pesadamente
no caminho para a cremação
de como dói olhar o quarto com dois berços montados
e saber que um deles estará sempre vazio
ouça isto...
lembrarei sempre de tudo
mas a lembrança principal, é esta:
dos seus olhinhos se abrindo
naquele último dia
brilhantes e escuros, como os meus
parecendo me reconhecer
parecendo
sorrir
e, sorrindo e brilhando,
emocionando seu pai.
Esse foi o último dia.
Na manhã seguinte, o telefonema
e o domingo todo de lágrimas.
Se é verdade o que dizem
disso do corpo acabar
mas infinito ser o espírito
então
ouça isto...
velava o seu sono
em sua redoma de prematuro
possa você, agora,
das paragens celestes onde se encontra
(se é verdade o que dizem)
possa você, agora
velar
o sono
do seu pai.